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Papa Francisco, Mario Vargas Llosa e a Amazônia

Estes dois homens da mesma geração morreram quase ao mesmo tempo e se alinharam no alerta sobre a sanha destruidora da floresta e seus povos.

Mario Vargas Llosa, escritor peruano e prêmio Nobel morto há duas semanas, aos 89 anos, escreveu romances fascinantes sobre a Amazônia. Talvez o mais famoso entre eles seja Pantaleão e as Visitadoras (1973), uma comédia protagonizada por uma batalhão na fronteira do Peru com o Brasil.

Mas outros dois de seus aclamados livros olham com enorme acurácia para as mazelas pelas quais ava a região amazônica na primeira metade do século 20.

A Casa Verde (1965) e O Sonho Do Celta (2010) nos contam da tortura contra indígenas, violência de toda natureza contra as populações ribeirinhas, tráfico de animais, corrupção em esferas do Estado e dentro das ordens religiosas estabelecidas na região.

Em A Casa Verde, seu terceiro livro, Llosa ficcionou lembranças de uma viagem que fez à região do Amazonas no Peru, visitando o alto rio Marañon. A trama deste romance está centrada na personagem de Bonifácia, uma indígena awajun – ou aguaruna como eram chamados (pejorativamente) na época em que a obra foi escrita. 

Tudo começa com o sequestro da indígena ainda bebê por um grupo de padres e como a transformam em uma noviça no convento de Santa María de Nieva. A partir daí, as críticas são mordazes à igreja católica; Bonifácia se torna um ícone da queda, do indígena aculturado.

Nesta semana, quando soube da morte do Papa Francisco, aos 88 anos, me lembrei imediatamente de seu comprometimento com a Amazônia e, por alguma razão obscura, me lembrei deste livro de Vargas Llosa. Coincidência ou não, quando anunciou que, pela primeira vez, um sumo pontífice visitaria a Amazônia, a Igreja revelou que Francisco iria justamente à Amazônia peruana.

E assim foi! Em janeiro de 2018, o Papa chegou a Puerto Maldonado, capital da região de Madre de Dios. É um dos locais mais afetados pela sanha destruidora que acomete a Amazônia. Quando se quer mostrar o dano causado pela mineração ilegal de ouro, são geralmente os garimpos de Madre de Dios que nos brindam com fotos que chocam a qualquer um. 

Eu mesmo, após anos editando reportagens sobre Madre de Dios, fiquei de queixo caído quando sobrevoei a região em 2023. Terra arrasada é a melhor definição!

Ali, neste enclave da economia predatória, acredito que Francisco de uma forma indireta pediu desculpas pela Igreja aos povos indígenas, que aram maus bocados nos anos de colonização. Ele o fez convidando organizações representantes das etnias a estarem no altar ao seu lado, mencionando diretamente o martírio dos indígenas em isolamento. Falou sobre o consumo desenfreado e “da cultura do descarte” que vitima o clima e a todos nós.

Fiquei pensando nessa sobreposição de itinerários amazônicos – o do Papa e o do Nobel. Duas visões de mundo que não poderiam ser mais opostas! Mario Vargas Llosa, um neoliberal fervoroso, defensor da economia de mercado. Jorge Mario Bergoglio, um jesuíta despojado, crítico contundente do capitalismo. Ambos fizeram à sua maneira a denúncia dos abusos contra os povos indígenas e à Amazônia. 

Duas visões de mundo que não poderiam ser mais opostas! Mario Vargas Llosa, um neoliberal fervoroso, defensor da economia de mercado. Jorge Mario Bergoglio, um jesuíta despojado, crítico contundente do capitalismo.  

Gustavo Faleiros

Mas, se a viagem de Llosa que inspirou A Casa Verde tinha fins de pesquisa e rendeu um incrível romance, a viagem de Francisco já ocorria dentro dos preparativos para o Sínodo da Amazônia, a primeira assembleia de bispos realizada com foco na região.

Com sua capacidade de articulação, o Papa mobilizou a estrutura da igreja católica para impulsionar o movimento que já vinha da primeira encíclica de Francisco – Laudato Si – que tratava da preservação ambiental e da ameaça existencial imposta pela mudança climática. O documento final do Sínodo, de outubro de 2019, fala no florescimento de uma “igreja multicultural” na Amazônia.

Esse caminho já estava sendo adotado no Brasil. Digo isso por todo o trabalho feito por alas da igreja católica no país, como a Comissão Pastoral da Terra (T), que monitora e luta contra a violência no campo. Ou ainda o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), que está na linha de frente para a proteção dos territórios indígenas. Sabemos que, em nosso chão, existem e existiram religiosos sob ameaça, além daqueles que pagaram com a própria vida por sua defesa da Amazônia e de seus povos. Salve irmã Dorothy Stang! 

É claro que também havia neste movimento de Francisco um objetivo de reconquistar espaço numa das fronteiras mais disputadas pelos grupos religiosos. Ao reforçar o papel da Igreja na Amazônia, o Papa também se opôs ao avanço da concorrência evangélica. Após o Sínodo, o Papa garantiu que a estrutura existente hoje pela igreja católica na Amazônia será mantida. Como aliadas dos movimentos sociais e indígenas, as paróquias em grandes cidades e as comunidades eclesiais de base nos rincões da floresta são agora inimigas dos desmatadores. 

A discussão do Sínodo não foi apenas liderada pelos bispos e a cúria em Roma. Houve a participação e a consulta de diversos líderes indígenas. Cientistas foram recrutados a assessorar o Papa. Entre outros, Ima Vieira e Carlos Nobre, dois reconhecidos cientistas brasileiros, literalmente falavam ao pé do ouvido de Francisco.

Em um post no Linkedin, rememorando sua atuação junto ao pontífice, Ima Vieira lembrou estas palavras que ouviu dele: “Devemos nos aproximar dos povos amazônicos na ponta dos pés, respeitando sua história, sua cultura, seu estilo de bem-viver.”

Palavras que acredito vão ressoar por muito tempo. Palavras de Jorge Bergoglio, pároco argentino, que se tornou o primeiro Papa latino-americano e sempre se dedicou aos pobres e às populações mais vulneráveis. 

PS: Em 2017, em uma viagem ao Alto Marañon, encontrei um senhor que havia sido o guia de Vargas Llosa em Santa María de Nieva. Ele se ressentia das críticas feitas pelo Nobel à Igreja. Escrevi esta história na revista piauí.

Sobre o autor

Gustavo Faleiros

Cofundador da InfoAmazonia e editor de Investigações Ambientais do Pulitzer Center.

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1 comment

  1. Parabéns Gustavo. Continui com seu trabalho. Você tem o mérito de informar e é um grande escritor.

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